Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermeneûtica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán

No dia 27 de julho de 2022 reuniu-se o NEAPRO/US para discutir a temática referida no título deste post. Para tanto, usou o texto de autoria de Lenio Luiz Streck e Luã Nogueira Jung, publicado na revista NEJ – Novos Estudos Jurídicos, v27, n1.

Segundo os autores, a noção de livre convencimento é tão disseminada quanto pouco problematizada. Ao consultar-se a doutrina nacional, depreende-se uma simples repetição de lugares comuns, os quais, de um lado, não explicitam, de forma detalhada, o desenvolvimento histórico do conceito e, de outro, são incapazes de justificá-lo teoricamente, o que justifica a abordagem realizada.

O projeto Athos do STJ

Em seu último encontro (25 de outubro), o Núcleo de Estudos Avançados em Direito Processual da UFSM realizou o debate do artigo “O projeto athos de inteligência artificial e o impacto na formação dos precedentes qualificados no superior tribunal de justiça” de Paulo de Tarso Sanseverino e Marcelo Ornellas Marchior.

De forma preliminar o texto instiga a reflexão sobre a transformação social contemporânea que faz desta uma “sociedade on-line”, que segundo os autores afetam todas as áreas da vida humana, dentre elas o Direito e o Poder Judiciário. Este último, merecendo maior atenção neste ponto da narrativa, uma vez que a posição do Poder Judiciário em sua mais alta instancia infraconstitucional é o objeto em debate.

Como resultado da sociedade em rede, surgem novas necessidades e novas tecnologias capazes de sanar velhos problemas, celeridade e a uniformização da jurisprudência Diante disso a tecnologia da quarta revolução, em especial a inteligência artificial, é apontada como um caminho para possível solução, principalmente no que tange ao número de processos.

Para sanar a problemática da uniformização da jurisprudência das leis infraconstitucionais federais, o Superior Tribunal de Justiça, em cumprimento à sua atribuição legal, prevista no CPC/2015 e ampliada em seu regimento interno, implementou o Projeto Athos. O referido projeto tem a função de detectar e analisar os processos na distribuição e “pinçar” aqueles que se demonstram aptos a figurar como demanda repetitiva.

O Software utilizado pelo STJ foca no sistema repetitivo de julgamento recursal. Ao fazer uso da tecnologia, impulsiona o julgamento por amostragem..

No encontro foram debatidos temas como a necessária implantação de sistemas informatizados, coerência e integridade de decisões, etc.

Inteligência Artificial e Direito Processual

Ailson Gamarra e Alice Lucena

O NEAPRO/UFSM retomou suas atividades neste dia 18 de outubro de 2021 com a leitura, seguida de debate, do texto “Virada tecnológica no direito processual e etapas do emprego da tecnologia no direito processual: seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia?” [1], artigo que inicia o livro “Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual”.

O texto extremamente atual trata sobre uma mudança de paradigmas na realidade dos profissionais e das instituições, desde o início da implementação de tecnologias na transição dos anos 80, 90 e começo dos anos 2000 até o emprego da tecnologia em maior escala nos dias atuais, como forma de ampliar a tutela jurisdicional de impacto social e eficácia jurídica.

O artigo se propõe a demonstrar de que forma a tecnologia foi se utilizando de uma série de interações para adaptar o procedimento, seja num plano mais brando como no caso da automação de atos processuais, como em espectro mais profundo, como no caso de Inteligência Artificial, ODRs, etc.

Destacou-se as Online Dispute Resolution (ODRs), ou plataformas de resolução de conflitos. Estas fazem parte da terceira etapa de emprega de tecnologia (transformação) e potencializa uma nova abordagem para a resolução de litígios e a prevenção de novas lides. Ademais, as ODRs seguem não só uma tendência, segundo o texto, de aumento (e fomento) das relações on-line, mas, juridicamente, de conexão com o próprio ordenamento jurídico – vide as tentativas do CPC/15.

A reflexão sobre o texto acerca da inteligência artificial e das ODRs, com intuito acadêmico por parte do grupo, é a análise hermenêutica filosófica como teoria de base para se estudar a implementação dessas tecnologias no processo. Afinal, ainda que implicitamente, o autor tem como teoria de base a procedimentalista, focando na comunicação e resolução participativa.

Discutiu-se o uso da Inteligência Artificial como resultado do que o próprio Código de Processo Civil prevê no artigo 926. Nele as expressões coerência e integridade tem como perspectiva a tese da resposta correta de Gadamer, e podem ir ao encontro das possíveis soluções incorporadas ao processo pela IA.

[1] NUNES, Dierle: Virada tecnológica no direito processual e etapas do emprego da tecnologia no direito processual: seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia?. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; NUNES, Dierle; WOLKART, Erik Navarro (org.). Inteligência artificial e direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2021. p. X – X.

Processo e crítica hermenêutica do Direito

Por Louise Uberti Müller

Em uma de suas reuniões em 2021 o NEAPRO/UFSM realizou a leitura, seguida do debate, do artigo “O que o processo civil precisa aprender com a linguagem?”[1]. O texto permite uma reflexão crítica acerca da construção do direito processual civil – que fora idealizada com base no paradigma filosófico racionalista de René Descartes e Wilhelm Leibniz.

Segundo o artigo, esse paradigma filosófico racionalista resulta na perspectiva de visualizar o processo civil como um método, com um procedimento rígido, que tem como compromisso a produção de coisa julgada baseada na ideia de “busca pela verdade real”. Esse fenômeno descrito foi denominado por Ovídio Araújo Baptista da Silva como ordinariedade (expressão revogada pelo CPC 2015, ao menos enquanto expressão).

Mas, afinal, quais seriam as implicações práticas que a ordinariedade ocasionou ao direito processual civil? Para esclarecer esse questionamento, o artigo demonstra que o paradigma filosófico racionalista presente no processo civil impõe um “mesmo procedimento de cognição plena e exauriente” para todos os litígios trazidos à tutela da Justiça – ou quase todos –, sem considerar as espécies de direito material que estão, porventura, sendo discutidas. Em suma, essa reflexão trazida pelo texto pode ser observada no fato de que existe uma mesma liturgia (i.e., procedimento ou processo) para tutelar litígios envolvendo direito do consumidor, ambiental, e o crédito, por exemplo – o que é absolutamente desproporcional.

Dito isso, conforme abordado pelo texto, o direito processual, que atualmente está enraizado no paradigma filosófico racionalista, evidentemente necessita adotar um perfil congruente com o Estado Democrático de Direito.

Como forma de romper com a dita ordinariedade, o artigo utiliza-se da Crítica Hermenêutica do Direito e da filosofia de Heidegger e Gadamer, demonstrando como a lógica cartesiana no processo civil tornou-se obsoleta. Com isso, é possível refletir que a quebra da ordinariedade no cenário processual não necessita, irremediavelmente, de uma reforma legislativa, mas, sobretudo, carece de uma “ruptura com o senso comum teórico dos juristas”.

A partir dessa ruptura, quiçá a comunidade de juristas irá renunciar ao racionalismo de René Descartes e acolherá o giro ontológico linguístico inaugurado por Heidegger e Gadamer, atenuando, cada vez mais, a chamada ordinariedade no processo civil, que ainda se mantém presente ideologicamente. 


[1] STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; DIETRICH, William Galle.  O que o processo civil precisa aprender com a linguagem?. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 2, p. 317-335, 2017. Disponível em https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/1874. Acesso em: 14 jul. 2021.

O que o processo civil precisa aprender com a linguagem?

por Tricieli Radaelli (NEAPRO)

A abordagem dos autores acerca do mito da ordinariedade composta pelo caráter filosófico racionalista, impregnado ao Processo Civil Brasileiro, veicula-se a partir de uma Crítica Hermenêutica do Direito baseada nas correntes filosóficas de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Partindo-se da concepção heideggeriana, abre-se passagem para a superação dos pensamentos metafísicos ontoteológicos relacionados à linguagem, utilizada até então como instrumento aprisionador do sujeito-objeto.

Enquanto a metafísica não entende a linguagem como uma condição de possibilidade, o giro ontológico-linguístico surge com objetivo de afastar o modo estático de pensá-la. E, como o processo se traduz por ela, logo este também não é algo que deva ser visto como meramente abstrato ou teórico, ele existe concretamente no mundo e se perfaz nas relações cotidianas.

Com Gadamer há uma continuidade no desmonte do método cartesiano, ele vale-se das descobertas de Heidegger como um marco para elevar a linguagem a um patamar no qual, além de ela não ser um instrumento de acesso do sujeito ao objeto, ela emancipa o mundo para que este também não seja um objeto assujeitado pelo sujeito. Para ele, a capacidade de compreensão é intrínseca ao ser e não uma forma de comportamento, por isso o controle dos pré-conceitos é importante para que a tradição não seja ignorada.

Não significa que os pré-conceitos devam ser descredibilizados no todo, mas analisados em sua legitimidade e, com isso, farão parte de uma compreensão mais pura baseada em opiniões prévias legítimas. Assim, Gadamer conclui que a interpretação não pode ser reproduzida, porém produzida a partir de um diálogo com a tradição, elemento que auxilia no rompimento com a ideia hermenêutica clássica de que a aplicação ocorreria depois da interpretação pelo intérprete. Quando Gadamer explicita que a aplicação já acontece no momento do contato entre sujeito-objeto, compreende-se, enfim, que da aplicação do método, o intérprete já haveria se pronunciado, demonstrando o atraso do método.

A lógica do paradigma metafísico ontoteológico continua sendo empregada no Processo Civil Brasileiro e, por isso, destaca-se que tanto a hermenêutica filosófica, quanto a filosofia hermenêutica, são subsídios primordiais para cindir a perspectiva do processo como método. O processo não é acessório da jurisdição e somente será eficiente a atender as exigências do caso concreto por intermédio da linguagem como condição de possibilidade.

Ainda sobre o debate Hart-Dworkin

(por Bruna A. Obaldia)

O NEAPRO/UFSM vem dando seguimento a estudo sobre o debate teórico estabelecido entre Herbert Hart e Ronald Dworkin. Tem sido trabalhado o texto “O debate entre Hart e Dworkin: a controvérsia acerca da existência de divergências teóricas sobre o direito”[1], o qual propiciou aos integrantes do grupo de pesquisa uma perspectiva diferente da discussão em tela ao centrar-se no âmbito da (im)possibilidade de (re)conhecimento de divergências teóricas sobre o direito.

Sabe-se que o debate Hart-Dworkin, para além do nome e construção teórica de ambos os pensadores, é fixado como um dos grandes pontos de necessário estudo acerca da teoria do direito, mais especificamente no que tange às decisões judiciais (ainda que, por óbvio, temas de suma importância estejam nele inseridos, como a inserção da moral e da política no (e do) direito).

Mais do que o embate entre dois jusfilósofos, tal debate se caracteriza pela discussão entre as concepções do positivismo jurídico – representado por Hart – e o interpretativismo construtivo – representado por Dworkin. Estudar essa discussão, pois, é medida que se impõe, notadamente no que diz respeito à (necessidade de) compreensão dos pilares teóricos que edificam a realidade de direito que é produzido na contemporaneidade.

Para discutir especificamente a controvérsia acerca da existência de divergências teóricas sobre o direito, foram colocados à discussão os argumentos anti-relativistas dworkinianos e positivistas hartianos. Em Dworkin é possível verificar a possibilidade de existência de divergências – entre operadores do direito – no que tange à veracidade das proposições jurídicas, seja no cenário do que denomina questões de fato ou às questões de direito. A fim de comprovar tal afimação, como é típico do autor, vale-se de decisões judiciais que sustentem sua teoria. Destarte, Dworkin alerta para a total insuficiência das teorias semânticas que pairam sobre o direito, já que estas se localizam no ideal de eu somente as discordâncias empíricas poderiam ser admitidas em direito.

O convencionalismo de Herbet Hart e a (aparente) divergência com o valor de face dos juízes foi discutido, bem como as teorias construídas a partir de tal incompatibilidade, denominadas teoria do erro e teoria da dissimulação. O positivismo argumenta também, nessa perspectiva, que os desacordos teóricos, tão amplamente discutidos por anti-relativistas, seriam praticamente irrelevantes na construção da decisão judicial.

Por fim, discutiu-se a alternativa proposta por Scott Shapiro com vistas à superação do interpretativismo dworkiniano e do convencionalismo exacerbado hartiano: a teoria do direito como planejamento. O autor entende que é necessário uma mudança de vocabulário. Alega que as denominadas divergências teóricas não seriam caracterizadas por desacordos sobre o direito, mas sim desacordos sobre qual seria a metodologia interpretativa mais adequada para a compreensão das normas. Ainda nesse sentido, insere-se a ideia de “meta-interpretação”, que seria “[…] a metodologia usada para determinar a metodologia interpretativa mais adequada e, por isso, desacordos teóricos são, na sua terminologia, desacordos meta-interpretativos.” (SOARES; MACIEL, 2017)

Ante todo o exposto, o NEAPRO/UFSM (re)afirma o seu compromisso com a pesquisa séria e aprofundada acerca de temas indiscutivelmente importantes à teoria do direito, que encontram seus elementos basilares na filosofia no direito.


[1] SOARES, Fabiana de Menezes; MACIEL, Caroline Stéphanie Francis dos Santos.  O debate entre Hart e Dworkin: a controvérsia acerca da existência de divergências teóricas sobre o direito. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 70, p. 307-331, 2017. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1850. Acesso em: 02 out. 2020.